Opinião: «Propina zero, sim!», por Ivan Gonçalves

Artigo de opinião do Secretário-geral da JS, Ivan Gonçalves, publicado hoje no Diário de Notícias

 

No passado dia 2 de setembro, num artigo de opinião intitulado «Propinas, sim!», o Professor Vital Moreira defendeu a necessidade de manter o valor atual de propina cobrado no ensino superior, fazendo para isso referência à posição que a Juventude Socialista tem em defesa da “Propina Zero”.

Não está em causa o percurso pessoal e político de Vital Moreira que me merece todo o respeito, estivemos inclusivamente do mesmo lado da “barricada” em diversas lutas nas quais o tempo nos veio dar razão. Contudo, a visão que apresenta sobre a cobrança de propinas parece-me errada e não condizente com os desafios que o nosso país enfrenta.

Vital Moreira utiliza, essencialmente, dois grandes motivos para justificar a sua posição: o de que a eliminação da propina implicaria «um enorme esforço orçamental adicional, sendo também socialmente injusta»; e o argumento de que «o atual regime de propinas […] nem sequer é muito exigente, pouco excedendo os mil euros por ano na frequência do primeiro ciclo (licenciatura)». Termina referindo que «Não é justo que todos sejam chamados a financiar um serviço público que […] é essencialmente um investimento pessoal em melhor emprego e melhor remuneração, que beneficia sobretudo quem já tem melhores condições económicas e sociais»

É por este último ponto que importa começar: o da visão de que o investimento na democratização do acesso ao ensino superior não traz benefícios para toda sociedade. Portugal é ainda hoje um país onde o nível médio de qualificações está abaixo do resto da Europa, muito longe da realidade do país de “doutores e engenheiros” que nos diz a mitologia que a muitos interessa transformar em verdade absoluta – nomeadamente a uma certa direita ultramontana. Este facto é dos que mais contribui para o nosso atraso estrutural, não obstante o caminho que tem vindo a ser feito ao longo das últimas 4 décadas de democracia.

Num país parco em grandes recursos naturais valiosos, é pelo aumento global das qualificações do seu povo que melhor nos poderemos preparar para as transformações globais do mundo em que vivemos, ao mesmo tempo que promovemos uma sociedade com maior igualdade de oportunidades, logo, com maior justiça social.

É certo que a frequência de um curso superior beneficia também (mas não só) o próprio. Mais uma vez, ao contrário do que muitas vezes nos fazem crer, e fazendo uso, a título de exemplo, do estudo «Benefícios do Ensino Superior» da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), publicado em 2017, conclui-se que, além da satisfação e situação laboral mais favorável, existe uma «vantagem salarial clara para os diplomados com o ensino superior». Por exemplo, em 2010, um licenciado recebia mais 70 por cento do que alguém com o ensino secundário.

Mas é também importante desmistificar o argumento de que as propinas não constituem um entrave à frequência no ensino superior. O projeto CESTES 2015/2016, do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e coordenado por Luísa Cerdeira, refere que estudar no ensino superior custa, em média, 6445 euros anuais a cada estudante, que os estudantes ou as suas famílias usam 62,8% do valor da mediana do rendimento anual de um adulto português para pagar a frequência do ensino superior e que os portugueses gastam para frequentar este nível de ensino mais de duas vezes o que gastam os suecos e quase duas vezes e meia o que despendem os alemães. Mais do que isso, vários países europeus como a Alemanha, Suíça, Bósnia, Sérvia, Albânia e Macedónia aboliram já o pagamento de propina, em muitos nunca existiu esse pagamento e nalguns são apenas pagos custos administrativos. Por outro lado, é sabido que as propinas cobradas em Portugal, no Ensino Superior Público, são, em valor bruto, das mais elevadas da Europa. Sim, tudo o que acabei de referir representa um enorme obstáculo no acesso ao ensino superior.

É por tudo isto que, em maio passado, a Juventude Socialista propôs, em Congresso, que o Partido Socialista adotasse uma posição favorável à diminuição faseada do valor máximo de propina cobrado no primeiro ciclo do ensino superior. Não somos irresponsáveis, temos consciência do esforço orçamental que o nosso país necessita de fazer e por isso não propomos que pura e simplesmente deixem de ser cobradas propinas no Ensino Superior, em Portugal.

O que defendemos é que o seu valor deve evoluir progressivamente para a propina zero, passando, nos próximos dois anos, pela redução do seu teto máximo para o valor equivalente a duas vezes o Indexante de Apoios Sociais. As contas estão feitas! Esse valor máximo de 857,8€ significaria um esforço público inferior a 20 milhões de euros, um valor demasiado baixo para que continuemos a ter um dos sistemas de ensino superior europeus em que a propina cobrada é das mais elevadas.

Por último, o professor Vital Moreira refere que «só devem ser universalmente gratuitos os serviços públicos universais, de que todos usufruem, o que está longe de suceder com a frequência do ensino superior, que atualmente cobre apenas metade dos jovens em idade de o frequentar».

Sendo Vital Moreira um dos mais conceituados constitucionalistas portugueses, será escusado relembrar que a Constituição da República Portuguesa prevê relativamente ao estabelecimento progressivo da gratuitidade de TODOS os níveis de ensino no nosso país ou sobre o seu regime de acesso.

Neste caso, parte de um facto verdadeiro, que apenas metade dos jovens em idade de frequentar o ensino superior o fazem, para daí concluir que não faz sentido o Estado cobrir os seus custos. Ora aquilo que pensamos é precisamente o contrário, que não nos conforma ter um sistema que deixa de fora aqueles que menos possibilidades económicas têm, para aceder aquilo que a Constituição define, e bem, como um direito universal.

Queremos um país comprometido com uma visão de fundo para o ensino superior que o assuma como um instrumento imprescindível ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, é urgente tomar medidas para diminuir os custos de frequência do ensino superior, para que ninguém fique impedido de o frequentar por falta de meios económicos, aumentando assim a democraticidade no seu acesso e a sua base de recrutamento.

Ser um agente de transformação política identificado com a esquerda progressista exige um olhar atento para aqueles que, porventura por não terem sido socialmente beneficiados com as suas origens, veem na educação pública o grande instrumento de equilibrar as possibilidades de terem uma vida realizada. O papel do estado não termina, por isso, no 12º ano, e o ensino superior não pode continuar a ser, como ainda hoje é, um privilégio apenas acessível a metade dos jovens em idade de o prosseguir. A bem de uma maior igualdade de oportunidades.

Vital Moreira parece ter-se esquecido de tudo isto. A Juventude Socialista não!